1>>>>> Travelogue + guia de viagem
É um filme de viagem no qual o viajante-explorador tenta desvendar o “mundo novo”, um registro ilustrado e autoral da viagem mas, ao mesmo tempo, é um convite à viagem tal como um guia, porque o autor usa o pronome na primeira pessoa mas também na segunda pessoa, compartilhando o seu lugar de explorador conosco. Um guia de tom hipnótico porque se trata de uma viagem impossível, irrepetível porque situada numa temporalidade bastante específica: 1990, dois anos antes de “fim do império”, época da glasnost e da perestroika, ano limiar da transformação da URSS em Federação Russa.
2>>>>> Evidenciação da noção de espaço-tempo
Uma narrativa baseada no conceito da inseparabilidade entre espaço e tempo, contra a convenção, até o século XIX, de tratar o espaço como o fixo e o imóvel e o tempo como a mobilidade. A geografia não é mero cenário para o desenrolar da história. Para cada dia da semana, corresponde um lugar. Para cada data, corresponde um endereço da cidade de Moscow, um território que aparece através da coleção de fragmentos. O espaço-tempo de uma semana apresenta o território em crise. Uma experiência simultânea de historiografia e geografia.
3>>>>> Substituição da coletividade pela individualidade
O olhar horizontal substitui o olhar vertical das massas no espaço público. A multidão de 100 mil pessoas se permite filmar de perto; ela começa a se fragmentar em milhares de partículas que não se reconhecem mais como uma totalidade. Agora entra em cena o retrato, a singularidade, a diversidade e a liberdade de reação frente a uma informação nova. Um “espaço de linguagem” (em vez de “figura de linguagem”): a experiência de um bar, lugar imaginário, talvez uma memória ou uma construção mental, é transportado para a Manesh Square. A flanerie é possível ali apenas um século depois de Paris. A experiência de percepção do outro, da abertura para a diversidade, a multiplicidade. O solitário que observa o movimento de estranhos sentado em um bar em Nova York é agora o estranho ocidental que filma a multidão e a recorta em múltiplos indivíduos.
4>>>>> Tensão entre lugar e não-lugar.
De carro, de metrô, a pé, de trem. O autor se desloca entre lugares. Esses lugares de passagem, que incluem cozinhas, banheiros ou salas de TV nórdicas bem como escadas rolantes e túneis subterrâneos constróem a tensão entre identidade e homogeneização. Espaços antropológicos particulares e espaços genéricos. Mas essa situação é dinâmica, pois o olhar ocidental do narrador estabelece um diálogo intercultural que recompõe lugares em não-lugares.
5>>>>> Questionamento da categoria de paisagem
a) Se John Berger escreveu que “toda imagem encarna um modo de ver” e Alain Roger escreveu que “toda paisagem é sobrenatural” porque já sofreu um processo de culturalização ou de artealização, o autor se esforça em devolver a ficção da paisagem e do cartão postal ao cotidiano do país, ou seja, à experiência diária das ruas, aos lugares sem os monumentos que contam histórias oficiais ou oficializadas de “vitórias” mas onde as microhistórias e as “derrotas” se espacializam. Será que toda viagem está condenada à condição de turismo? Só somos capazes de ver cartões postais como a Universidade de Moscow?
b) Em uma festa imaginária, outro “espaço de linguagem”, fala-se sobre a costa de Riga, capital da Letônia. Alguém desenha a sua imagem: um arame farpado representa a costa, a fronteira que contradiz a globalização como fábula, que redesenha a linha abissal com suas novas territorialidades de final do século XX. Campo de concentração ou resort? Espaços de dominação sem apropriação. Seja dominação política ou econômica. A costa, paisagem turística de cartão postal, é transformada na imagem da fronteira intransponível, segregadora, um território-zona.
A nossa experiência cognitiva de reterritorialização em Moscow corresponde ou equivale à experiência de desterritorialização dos habitantes daquela cidade. A música tema do filme, “Tabula rasa” de Arvo Pärt, de 1977, músico nascido na Estônia em 1935, um dos três países bálticos, desafia a dimensão utópica do processo de um “recomeço” e da difícil re-territorialização de fronteiras culturais internacionais.
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